domingo, 30 de março de 2014

As três-para-quatro formas de ser contra algo

      A "nova classe média" brasileira adora ser contra as coisas. Falo por experiência, como membro dela. Eu ainda pretendo escrever um artigo bem longo sobre como a contingência e a relevância estão sendo varridas da nossa visão política. Por hora, vou tentar não tocar no assunto, senão vou me perder nele.
      Apesar disso, ser contra é inevitável. Quando somos a favor de algo, somos contra sua negação. A questão é que, como seres pensantes, queremos ser também seres avaliantes: julgar algo em sua essência e colocar em uma caixinha que diz "certo" ou em outra que diz "errado". Infelizmente, nem sempre é tão simples, e maus avaliadores, ao perceberem isso, forçam a caixinha, não querendo adaptar seu "certo" aos argumentos contrários.
      Uma questão fundamental é que as pessoas querem ser contra algo. É como a fé trabalha: parcialmente. E isso leva, frequentemente, ao que eu considero a falacia lógica mais comum na política brasileira: O ignoratio elenchi
      Ignoratio elenchi
significa ignorar uma refutação. Quando eu acredito em A e alguém diz B, raramente eu tento contextualizar B, eu simplesmente respondo "A!". Se a pessoa contesta meu A com um C, eu digo "mas D é inquestionável!", sendo que a questão não pode ser resolvida só com A e D. Poucas vezes explicamos porque o que o outro disse está errado, normalmente apresentamos outras evidências de nosso argumento, sem querer chegar a uma conclusão que não seja a nossa conclusão, que é produzida exclusivamente pelos nossos argumentos.
      Essa falácia é causada por não entendermos que há mais a uma discussão do que ser contra algo, como "sou contra o Lula" ou "sou contra o PSDB". Não faz sentido dizer simplesmente isso.

      Ser contra é ser contra um verbo: o processo político exige que votemos. E em votar, está rejeitar pessoas. Rejeitar uma pessoa, porém, não é ser contra ela, porque a pessoa, na política, é uma referência ao que ela representa. Se um grande líder muda de posição política, devemos mudar nossos favoritismos também. E raramente mudamos. Queremos ser contra O Lula, e assim somos contra tudo o que ele faz antes mesmo de fazer. As vezes somos contra 90% do que um faz, e assim tendemos a ser contra os outros 10%, mesmo que sejam coisas das quais seriamos a favor se outros fizessem.

      Assim, geralmente quando há um ato, como "as manifestações de 2013", "mulheres mostrando os peitos em protestos feministas" ou "A implantação de uma ditadura militar", existem duas políticas pelas quais podemos considerar o ato: o ato em si e as consequências que ele pretende. As manifestações de 2013 envolviam "o ato de se manifestar" e "as diversas propostas apresentadas", os protestos feministas envolvem "o ato de mostrar-se de topless" e "as mudanças sociais que se pretende atingir com o ato", a implantação de uma ditadura envolve "o ato de estabelecer um sistema político não-democrático" e "as consequências de se viver em uma ditadura, e suas propostas"

      Ser contra um ato é ser contra o direito de realizá-lo. Não necessariamente o direito legal, mas um direito moral. O bullying não deve ser caso de justiça, mas o ato não deve ser tolerado. Essencialmente ser contra um ato é considerar que devem haver medidas para evitá-lo.
      Ser contra as consequências pretendidas de um ato é algo com o que devemos tomar mais cuidado. Ser contra o ato é ser contra as consequências reais desse ato, quaisquer que sejam. As consequências pretendidas, porém, frequentemente são outras. Raramente lembramos do fato de que a maioria das coisas são feitas com bons resultados em mente. Em assassinar duas milhões de pessoas, o regime do Khmerr Vermelho tinha como consequências pretendidas preservar a tradição cultural do Camboja. As consequências reais foram um genocídio, e a deposição do Khmerr com intervenção internacional. Podemos, porém, ser a favor de preservar tradições culturais sem precisarmos ser a favor de matar qualquer um que não faça isso. Nesse quesito, "ser contra o Khmerr Vermelho" se torna algo mais complexo.


      Assim, existem três-para-quatro combinações de "a favor" e "contra" para cada ato.

      1) Ser contra o direito de fazê-lo: implica em deslegitimar o ato como um todo. Não implica necessariamente em discordar com as consequências pretendidas, mas significa discordar com as consequências reais (ou o que você acha que são as consequências reais) do ato. É o "achar errado", o reprimir. Aqui se encaixam os crimes e falhas de caráter, embora exatamente quais seja subjetivo, afinal não discordamos todos das mesmas coisas

      2) Ser a favor do ato, mas contra suas consequências pretendidas: isso pode parecer estranho, mas podemos reconhecer que algumas vezes os atos pretendem consequências ruins, mas causam consequências boas. Embora, por exemplo, uma revolta tenha revindicações absurdas, ela pode ser vantajosa por movimentar interesse político e debates sobre essas propostas. Essa é uma possibilidade que raramente consideramos quando somos maus avaliadores: a possibilidade de algo produzir bons resultados que não são os resultados que pretende produzir. Quando odiamos a ideologia, tendemos a prever resultados catastróficos caso seja aplicada. Mas nem sempre é o caso.

      3) Ser a favor das propostas, mas considerar que o ato não é uma forma de atingi-las: a um bom avaliador, esta é a resposta mais comum. Todos temos noções comuns sobre o que é bom e o que é ruim, mas raramente concordamos quanto às formas de se chegar lá. É o contrário da 2: somos a favor das consequências pretendidas e contra as consequências reais. É importante identificar primeiro quando discordamos com relação às consequências pretendidas, porque isso da um outro nível à discussão. Uma coisa é discutir alternativas, outra é discutir ideologias, e em cada discussão você precisa saber o que está sendo discutido.

 
   4) Ser a favor do ato e de suas propostas, mas considerá-lo uma forma ineficiente ou complicada de realizá-las: o motivo do três-para-quatro é que é controverso se isto ainda é "ser contra". Como engenheiro, eu descarto uma alternativa ineficaz com a mesma rapidez com que descarto uma alternativa impossível, mas não posso negar que há uma diferença fundamental entre elas. Essencialmente é importante saber que nada está isento dessa discussão, por mais que sejamos a favor do ato e de suas consequências, é sempre importante perguntar "essa é a melhor maneira de fazer isso?" as vezes, por mais nobre que seja, não será. Essa é minha opinião sobre as manifestações de 2013. Fui a favor do ato, e de parte das revindicações (por mais vagas que tenham sido, poucas eram absurdas), mas acho o ato de se manifestar em grandes grupos e sem pauta uma forma vaga de chegar a essas resoluções, ou de politizar um povo.

      Discutir um ato político envolve determinar onde há discordância entre as partes, e resolvê-las localizadas. Não adianta discutir a proposta de um grupo se você está considerando a legitimidade do ato, e não adianta falar mal ou bem do ato se seu desgosto é com o que está proposto. E é engraçado ver como o ignoratio elenchi sempre acontece flutuando entre um e outro. Se o argumento é a favor da proposta, refutam atacando o partido, se o argumento é a favor partido, refutam expondo a proposta. Segure suas minúcias e boas discussões! Lembre-se: é mais importante estar certo depois da discussão do que antes dela.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Algum dia...

    "O que você quer?"
    Essa é a pergunta mais importante do mundo. Sem exageros. De todas, todas as perguntas, essa é a mais importante. E até nos fazemos essa pergunta as vezes, mas não com muita frequência ou com um enfoque no futuro. A pergunta normalmente vem como "O que você quer fazer agora?" ou "O que você quer hoje?". Essas perguntas também são as mais importantes do mundo, mas lhes faltam as companheiras. "O que você quer na vida?". E quando nos perguntamos "O que eu quero na vida?", não relacionamos a pergunta com as milhares de "O que você quer hoje?" que nos fizemos, e vice-versa.

    A maioria de nós tem preguiça dessa pergunta, mas realmente ela é a mais importante dentro de um ambiente. Faz algum sentido fazer algo sem saber se você quer? Somos mau educados (com 'u' mesmo) a fazermos escolhas sem pensar "O que eu quero na vida? Isso que estou escolhendo tem a ver com o que eu quero?". Começamos a vida na escola, um lugar do qual queremos vorazmente fugir, mas ao qual vamos todo dia mesmo assim. E tem gente que foge mesmo. Alguns porque realmente se perguntaram o que queriam, e concluiram que não era uma vida de cultura, mas muitos fugiram sem se perguntar o que queriam na vida, mas se perguntando "O que eu quero agora?". E aí entra uma noção de prioridades: uma escada de quereres.





    Por mim, comer um salgado na cantina é algo que devemos frequentemente confrontar com "Isso está certo na minha vida?". Mas como avaliar se comer um salgado muda sua vida para melhor ou para pior? É exatamente isso que nos falta: a capacidade de expandir os efeitos de algo, independente da sua intensidade, para os interesses de uma vida. Voltando ao salgado, acho que a maioria das pessoas poderia seguir por um caminho bem semelhante: o prazer de degustar um salgado e matar sua fome versus suas expectativas de saúde e longevidade.

    Salgado é gostoso. Salgado é calórico. Se você tem uma adoração profunda por salgados, se eles lhe trazem um prazer genuíno quando você consome, que supera mil vezes a dor de não tê-lo quando você não pode, o lado 'gostoso' pesa mais. Se você não gosta muito, ou gosta mas tem compulsão, ou vício, e passa mais sofrimento querendo o salgado do que prazer comendo, o lado 'gostoso' pesa menos. Se você tem problemas de saúde, é sedentário, está acima do peso, e não faz refeições saudáveis, o lado 'saudável' pesa mais. Se você faz exercícios diariamente, faz refeições leves e está comendo aquele salgado esporadicamente, o lado 'saudável' pesa menos.

    Mas não podemos fazer a pesagem ainda, porque precisamos nos aprofundar. Sempre precisamos nos aprofundar. O quanto é importante para sua vida o prazer hedonista de comer? E o quanto é importante a longevidade, a saúde, a integridade do corpo? Cada lado da balança será ponderado pelo quanto ele é importante para sua vida. E é aí que você, que lê este texto, com certeza está pensando "todo esse esforço por um salgado?". Porque pensar no quanto as coisas são importantes para a sua vida é um esforço. E é um esforço porque você ainda não ganhou um know-how nisso.

    Eu posso fazer uma rápida revisão dos conceitos de toda a minha vida sem esforço em dois segundos (normalmente eu levo uns cinco, para garantir), porque já sei, por experiência, o quanto cada coisa é importante para mim.
    Sei que o propósito da minha vida é ser feliz, com um misto de desapego e satisfação de prazeres mundanos e elevados sem preconceitos ou distinções, e na medida em que minha disposição me permitir, ajudar as pessoas a pensarem de modos diferenciados, fazendo um pequeno entalhe em uma sociedade mais reflexiva, tolerante e, acima de tudo, satisfeita.
    Eu enunciei este último parágrafo para mim mesmo há quase nove anos, e, com pequenas paráfrases e mudanças, eu consigo sentir sua relevância nos diversos aspectos da minha vida em uma fração de segundo. Eu não preciso pensar tudo isso, já está estabelecido. A pergunta "O que você quer?" opera e se responde sozinha, em uma velocidade tal que posso, com muita certidão, basear a escolha de comer um salgado em toda a minha experiência de vida. Claro que as vezes (ou frequentemente) ela falha, e aí surge um Guilherme com defeitos. Mas posso dizer que minha vida mudou vorazmente depois que eu comecei a pensar quase todo dia no que eu quero fazer antes de morrer, e em como isso influencia o que vou fazer agora.


    Meu prazer não depende muito de disposição física... Não faço questão de longevidade... O lado "saudável" fica fraco. Não faço questão de boas aparências, mesmo que isso prejudique ligeiramente minha carreira... A aparência do gordo não me apela mal. Sou apaixonado por comer, tenho uma disposição ímpar para comer e ficar muito, muito feliz com isso... O lado "gostoso" fica forte. Guilherme compra e come o salgado.

    (Nota: estou comendo enquanto escrevo esta linha)

    Naturalmente, quanto mais rápida tem que ser a decisão, mais simples a análise. Alias, por isso temos instintos: para garantir que não precisemos lembrar que sobreviver é bom na hora de sair correndo de uma jaguatirica assassina.

    A longo prazo, porém, a atuação dos instintos fica mais fraca, e nossa razão pode contrariá-los. O instinto não impedia o seppuku dos samurais, porque eles reviam toda a sua honra, seu bushido, antes de fazê-lo, e concluíam que era isso que queriam.

    E a prazos mais longos ainda... A liberdade se torna muito forte. E também o querer. Nosso querer é mais profundo quanto mais longe olhamos. Por isso resoluções de ano novo são tão profundas, elas tem um tempo relativamente longo em vista. Religiões frequentemente dão olhos à eternidade, e por isso são tidas como as coisas mais importantes e profundas de uma vida... Mas as vezes nos esquecemos de que as ações do dia a dia, o ônibus que pegamos, o salgado que comemos, a escola que frequentamos, são cada um uma pequena parte desses propósitos maiores. Só vamos cumprir nossas resoluções de ano novo se lembrarmos delas a cada dia (por isso mesmo eu coloquei minhas resoluções de ano novo no desktop, para estar diariamente pensando nelas). E assim devemos sempre nos conectar com nossos objetivos distantes, todos os dias.

    Eu tenho certeza que isso soa perturbador e exaustivo para muita gente, mas isso é culpa dos seus objetivos de longo-prazo. Se vamos pensar neles todos os dias, eles tem que refletir o que somos no dia a dia. Não adianta mesmo só ter objetivos nobres, altuístas e construtivos. Isso eu descobri em uma crise existencial ao longo de 2012-2013, e por isso meu primeiro objetivo para 2014 é, com essas palavras, "me divertir pra caramba". Eu sei que, no dia a dia, me divertir é importante, até mais importante do que fazer bem ao mundo, então eu levo isso em conta. É o que quero. E os meus objetivos de curto prazo são realizados todo dia, como de todo mundo, mas os de longo prazo estão sempre em vista e atividade também.

    Esse bom entendimento é uma das coisas que pode nos tirar o medo da morte, do qual falarei em um outro post muito bombástico, algum dia...