terça-feira, 26 de novembro de 2013

Menos justiça e mais vida

       Há algum tempo, circulou pela internet um vídeo de um policial matando um ladrão. Fiquei impressionado. Não com o vídeo, acontece, e não tenho pena do ladrão. Mas eu esperava outra resposta das pessoas que também o viram. Coisas como "Merecido, tinha que fazer isso com todos", ou "Bandido bom é bandido morto" superaram muito em quantidade os comentários de não-violência.
       Antes que me perguntem, não, não tenho pena do ladrão, como eu fiz questão de dizer. Não tenho pena de ninguém, acho que cada um de nós tem sua pena, e Anúbis que cuide dela quando morrermos. O que eu tenho é a sensação de que nos beneficiaríamos muito de rever nossos conceitos de justiça.

       Imagine duas pessoas. Uma delas é má, terrível, absolutamente cruel e deseja o sofrimento de todos. Outra é um mártir benfeitor, um Jesus, um Buda, alguém capaz da mais pura e sincera bondade. Suponha que essas sejam as únicas duas pessoas do mundo. Qual é a melhor situação?

        (1) O mau vive infeliz, e o bom vive feliz
        (2) Ambos vivem felizes

        É aqui que entram noções conflitantes de justiça, noções estas muito fundamentais.

        (1) Justiça como causalidade: que cada um tenha o que merece, por sua natureza e suas intenções
        (2) Justiça como Bem: que cada um tenha todo o bem que puder

        É claro que meu exemplo não é social, pois duas pessoas não são uma sociedade, mas ele alude à justiça como algo fundamental. Se você prefere a justiça do tipo (1), devo reconhecer a coerência em que você defenda a pena de morte. Apesar disso, peço seu respeito, como alguém que acha, e sempre achará, que o ideal é que todos sejam felizes.


        Vamos então ampliar o exemplo para uma sociedade. Numa sociedade não é tão simples, pois nem todos os "bons" são Samaritanos, que não se incomodariam com a atuação dos maus. Há violência, roubo, prejuízo às partes inocentes. Esses são os nossos inimigos, mas não vejo por que estender a inimizade aos autores deles. É algo de violência, de revanchismo, do mesmo tipo de raiva.
        Não estou dizendo que o ladrão seja um coitado, porque a sociedade o fez ladrão, ou algo parafrásico. Acho que somos responsáveis pelo que nós nos fazemos e também pelo que a sociedade nos faz, mas responsabilidade, no caso, implica em arcar com limitações, não com sofrimento, infelicidade e morte. Responsabilidade é deixar de fazer o mal, não deixar de receber o bem.

       E se você acha que o ladrão não tem correção, devo discordar fortemente, mas mesmo que você esteja certo, independente de merecer ou não, não é bom que o ladrão possa, além do assaltado, viver feliz? A morte do ladrão não faz bem ao assaltado, e sua prisão não faz mal ao assaltado. Ao que foi assaltado, depois que a polícia renda e prenda o ladrão, tanto faz o que acontece com ele. Ou tanto faria, se o assaltado não tivesse uma raiva vingativa. Qual é a real vantagem dessa raiva então, que só serve para condicionar o ladrão à punição? "Tem que morrer". Não, não tem. Ninguém o obriga a morrer, e se a prisão não o corrigir, isso é culpa da organização da prisão, não da sua existência. Se matarmos todos os ladrões, não atingiremos uma utopia sem ladrões. Talvez isso possa diminuir a quantidade de roubos, mas vai aumentar a quantidade de mortes. "As vidas desses bandidos são sujas". No meu conceito de justiça, toda vida é limpa o suficiente para merecer existir. Uma vida vale mais do que dinheiro, independente da vida. O ladrão pode sim ser feliz. Concordo que o assaltado tem prioridade, mas dado que o ladrão seja controlado, essa prioridade está garantida, desde que o ladrão seja mantido longe da sociedade até que esteja pronto para voltar

       Eu fico triste com como nossas prisões são mais cárceres do que reformatórios. Os egressos do sistema penal voltam a cometer crimes porque simplesmente colocá-lo numa caixa de ferro, exposto a organizações criminosas e pessoas que vivem bem descumprindo a lei dentro da cadeia, não vai fazê-lo entender que pode ser feliz sem aquilo. Estamos tristes na rua, tristes assaltando, tristes presos, e tristes longe disso tudo, porque a violência continua acontecendo. E podemos ser felizes sim, todos nós, criminosos e honestos. Não é uma questão de merecer, é uma questão, simplesmente, do que é melhor para todos. "É impossível agradar a todos". Concordo, mas quando essa frase for usada para nos desestimular de tentar, eu discordarei. A primeira prioridade, para mim, seria proteger a sociedade honesta, e por isso, se não podemos reformar o preso, que pelo menos o mantenha-os afastados do mundo. Mas eu tenho certeza que, se tortura e trabalhos forçados são punições cruéis, a morte é pior ainda. Faça-se um exercício social. Pergunte aos presos se preferem morrer ou viver trabalhando doze horas por dia, sendo mal alimentados, mas tendo um pouco de lazer.

        É muito mais cruel matar do que punir de uma forma não dispendiosa aos recursos de um estado. Se você não acha que o criminoso pode ser corrigido, permita-o viver se redimindo, mas viver. Sua raiva do assassino é uma raiva assassina, a mesma que ele sentiu quando se sentiu injustiçado, e por isso matou. Julgue o criminoso sem raiva, mas com a noção de que até a pessoa que lhe fez mais mal merece ser feliz. Todo mundo merece ser feliz. Nem todos merecem mordomias, regalias, tranquilidade, mas a vida, como um potencial de felicidade, é sempre melhor do que a morte.

        "Você não pode falar, porque nunca teve uma arma apontada para a sua cabeça". Isso significa que apenas quem tem raiva de criminosos pode opinar a respeito do destino deles? Isso é um apelo à parcialidade. É equivalente a dizer que só quem já foi pobre pode decidir o que os pobres merecem em termos de benefícios estatais, que só quem já foi agredido por negros pode decidir se eles merecem punições diferenciadas, que nenhum presidente pode governar, porque tem poder sobre coisas que nunca experimentou. Infelizmente, nossa sociedade se constrói de modo frio, indireto, imparcial, e não há outro modo de ser. É justamente por não ter essa raiva assassina de quem já foi assaltado que eu posso falar. E eu tenho certeza absoluta que, se uma arma fosse apontada para a minha cabeça, eu ia desejar que ela deixasse de estar, e não ia me importar com uma vingança fria sobre quem apontou, só ia querer que tudo ficasse bem para mim.